Gostaria que nos resumisse sua experiência profissional.
Fale também sobre o trabalho que você apresenta na Bienal.
Sou
pintor há 30 anos. Trouxe para a Bienal cinco pinturas
de uma série de nove que ainda não estão prontas
e que tratam de algo muito específico que acontece na Bélgica.
Primeiro
o Alfons, o curador da Bienal, pediu-me para fazer algo sobre o Brasil.
Mas eu nunca estive anteriormente aqui, essa é minha
primeira vez. Achei incoerente fazer isso. Eu não sei nada
sobre o Brasil exceto pelos clichês que conhecemos na Europa:
futebol e carnaval.
Mas o interessante é que antes de participar
dessa Bienal eu havia pensado em fazer uma série de trabalhos
sobre o carnaval. Mas era sobre o carnaval que é realizado
em um determinado lugar na Bélgica, uma cidade chamada Belge.
Lá o carnaval é baseado
em uma história mitológica. Como no Brasil, que esteve
sob domínio português nos séculos XV e XVI, nós
estivemos sob domínio hispânico. Um dos imperadores,
Galaz V, nasceu em Flandres e no séc XV ou XVI ele, junto
com seu filho, fez uma viagem pela região – na época
a Bélgica ainda não existia – e descobriu um
local onde viviam os parentes de Margareth da Bulgária e suas
famílias.
E numa noite aqueles nobres homens vestidos de índios – porque
estavam conquistando um novo mundo – deram laranjas uns aos
outros. É baseado nesse mito que surgiu o carnaval de Belge.
Acho
que naquele tempo a classe alta tinha seu próprio carnaval,
como uma sociedade secreta.
Meu interesse era trabalhar com a idéia
de que, mesmo vivendo em um mundo onde a mídia não é confiável,
nós podemos voltar às antigas tradições
ou tentar focar o folclore regional sob um ângulo diferente.
E foi interessante pra mim criar aqui no Brasil uma espécie
de paralelo ao remeter meu trabalho a algo ‘exótico’,
incomum.
Assim, nas cinco telas que você vê há de
um lado o desfile, onde esses chapéus de Flandres são
usados... bom, o carnaval deles dura apenas um dia e começa
quando saem todas as pessoas nas ruas. Os participantes precisam
morar na cidade há pelo menos 10 anos; eles são levados
pelas pessoas que tocam bateria a fazer um tour que começa
as cinco da manhã, e há essa máscara para usar.
Lá pelo
meio da tarde todos colocam fantasias e esse chapéu,
que usam até a noite, junto com uns apetrechos nos joelhos
que fazem parte da fantasia e que depois são queimados à meia-noite. É o
ritual.[Voltar]
Eles mudam de roupa durante o dia?
Sim. Faz parte
do ritual. Essa festa é protegida pela UNESCO
porque é um carnaval muito peculiar. Eles também têm
guizos que ficam pendurados nas roupas e nos pés.
E é claro
que tudo é uma representação
da cultura inca na Europa, que foi levada à universidade no
século XIX e que depois tornou-se popular.
Vamos comentar
sobre a sua técnica. O que é importante
saber para entender seu trabalho? Porque sua pintura parece com surrealismo,
parece desfocada, como uma situação
mágica.
Bom, a parte desfocada não é como
se fosse uma pincelada, existe um formato. É um movimento
físico.
A idéia é trabalhar com tons e meios-tons
porque isso cria mais profundidade. Também porque se você usa
a cor completa o espaço fica bem mais delineado, esculpido,
e na minha opinião a área de pintura não é para
ser esculpida. Não acho bom memorizar as cores dessa maneira
porque fica mais complicado para o visitante memorizar a situação
inteira. Nesse caso ele terá que se aproximar mais da tela.
O
importante do meu trabalho é que ele trata de representação
de elementos, palavras. Primeiro eu penso sobre o que pintar e daí começo
a procurar pelo objeto, faço vários desenhos, muita
preparação, muitas tintas e fotos polaroids, o que
seja, e depois eu decido sobre a imagem. A pintura em si é feita
em um dia.[Voltar]
O que você gostaria de apontar para que entendam
sua pintura?
Meu interesse com o público da Bienal,
por ser um público
grande, é ver o que eles irão reconhecer, mesmo que
seja nuvens, ou se vão ver cogumelos... quero saber o que
eles vão entender. Pode ser que vejam um grupo, não
um desfile, se é que eles vão fazer uma ligação
entre desfile e fantasias, que é uma implicação
de carnaval. Mas a janela vai mostrar também que não é o
carnaval daqui. As laranjas amassadas mostram a reminiscência
de violência, o que aponta que o carnaval pode ser violento,
como brigas de ruas.[Voltar]
É uma situação global.
Na verdade,
a idéia é que o carnaval é uma
forma anárquica de organizar o mundo, uma das últimas
formas usadas e conhecidas de religião que sobrevive e ainda
assim, especialmente no Brasil, é um fator importante na sociedade
atual.
Eu não queria cometer o erro igual ao de Mathew
Barney e fazer algo sobre o carnaval daqui porque não seria possível
para mim; não o conheço. O que eu poderia fazer era
trazer algo do meu lugar, com o qual fiz o paralelo, de uma maneira
bem estranha e bem subjetiva.
Há várias camadas
em comum.
Sim. E foi um jeito também de sair desse
clichê exótico.
Essa é a idéia, na verdade.
Há muito
de visão política nessas
pinturas. Caso perguntassem para mim o que vejo nelas, diria que
não as vejo como símbolos de violência, religiosidade
ou sociedade secreta, mas como um momento na sociedade em que a
liberdade e a diversão surgem através de máscaras,
rituais, da música.
E se eu entendi direito, o tema
da Bienal é sobre território
livre. Assim, nesse sentido, o carnaval é um território
livre.
Uma parada no tempo, seja de um ou cinco dias.
E
também em termos de pintura, que é outra zona temporal.
Nessa
Bienal a pintura está privilegiada. O que
você tem a dizer sobre pintura?
É muito idiota
essa discussão sobre a pintura estar
viva ou morta, porque não leva a lugar algum. Quero dizer
que é melhor indagar sobre o que a pintura pode fazer. E mesmo
quando ela não é o ponto central do mundo das artes,
mesmo estando na área periférica, a pintura é muito
importante porque os remanescentes são importantes.
É uma
forma original de expressão.
Não. A pintura
ainda é sobre ‘o traço
original’, que é físico. É como fazer
escarificações na pele. O gesto é outro elemento
na pintura. Assim, ela é uma maneira de trabalhar e ler a
imagem.
É claro que a pintura não pode ter apenas um
caminho linear. Sempre houve grandes pintores e talvez seja por isso
que ela nunca acabou. Porque basicamente as pessoas têm interesse
nisso.
A controvérsia sobre esse assunto seria muito menor
se não
fosse por alguns críticos e curadores que determinam qual é a
maneira certa do público olhar e também como devem
entender o progresso tecnológico. Este deveria ser apenas
visto como progresso.
Arte não é mídia. Claro
que a mídia é importante,
mas apenas se for usada de forma correta e específica para
a criação de algo significativo. Isso em qualquer mídia.
A
mídia é um suporte, não uma linguagem.
Isso.
Não deve ser a razão da criação.
Bom,
a maioria dos artistas que trabalham com vídeo e afins
nunca me perguntou porque eu pinto.
Porque a pintura sofreu
uma atualização.
Você é um artista contemporâneo, com outro toque
e senso.Diferente dos pintores dos séculos XVIII ou XIX,
porque é outra visão de pintura.
É e
não é. A pintura não mudou tanto
assim, tecnicamente falando. As normas foram modificadas na mente.
Qual
a mensagem você quer passar com seu trabalho?
A pintura é basicamente
momento e precisão, que são
os meus assuntos de estudo. Mas não menos importante é a
idéia de transgressão da imagem cognitiva, e há muitas
camadas que fazem relação com o histórico da pintura
e com algo completamente banal, mas que se torna importante na hora
que é pintado. Não sei se você percebe ou não
o ritualismo específico que se materializa na pintura. É um
prazer único. [Voltar ao início]
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