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Entenda a 26ª Bienal de São Paulo
 

Alfons Hug
Curador

Cinqüenta e cinco países de todos os continentes aceitaram o convite para apresentar no Brasil, durante a 26.ª Bienal de São Paulo, de 25 de setembro a 19 de dezembro, o que há de melhor e mais relevante em sua produção atual. O tema deste ano é Território Livre. A maioria dos artistas criou novos trabalhos após estudo detalhado do edifício da Fundação Bienal e da cidade. Em praticamente todos os casos ocorreu uma prazerosa troca de opiniões entre a Bienal e os curadores dos diversos países. Em contraste com Veneza, onde as nações participantes cuidam de si mesmas e administram seus pavilhões de maneira independente, há, em São Paulo, uma interação espacial entre os 56 artistas das “representações nacionais” e os 80 diretamente convidados pela Bienal. Com a participação de 136 artistas, a Bienal de São Paulo é uma das maiores exposições em termos internacionais. Em 2002, a 25ª Bienal recebeu 670.000 visitantes e foi a exposição de arte contemporânea mais visitada no mundo. De novo uma ampla ação educativa propiciará, de forma sistemática, a toda uma geração de estudantes o convívio com a arte contemporânea. Entre eles, muitos oriundos dos subúrbios mais pobres da cidade.

Para enfatizar a unidade temática da mostra como um todo, os artistas convidados e os artistas enviados pelos diversos países foram mesclados na área de 25.000 m 2 do generosamente dimensionado pavilh ão desenhado por Oscar Niemeyer. Apesar de toda a complexidade das diversas vozes, cria-se desse modo um concerto coletivo.

A Bienal fala, como sempre, muitos idiomas – e, na perspectiva da gramática, em dois números. Fala no plural, pois os países indicaram seus próprios curadores, que apresentam uma enorme diversidade de posições artísticas do mundo inteiro. Fala no singular, pois o curador da Bienal, Alfons Hug, também tem a oportunidade de apresentar a sua visão da arte do mundo. Tradicionais em São Paulo e reservadas a artistas especialmente destacados, as chamadas “Salas Especiais” foram mantidas. Haverá, ainda, por ocasi ão das comemorações dos 450 anos de São Paulo, uma sala especial em homenagem a Cândido Portinari, cujo centenário ainda se celebra.

O Brasil, como de costume, exibe a maior parte dos artistas. Como os demais países, também é representado por um artista no segmento da “Representação Nacional”. Outros 19 brasileiros foram integrados à lista dos 80 artistas convidados de todo o mundo. Cada terço deles coube a São Paulo, ao Rio de Janeiro e ao restante a outrso Estados, o que, segundo a avaliação do curador, é representativo do estado atual da produção no Brasil.

Ao lado de uma intensificação do diálogo Norte-Sul, a Bienal de São Paulo também estabeleceu como objetivo reforçar os nexos entre as culturas não-européias, por meio de um diálogo entre os países do Hemisfério Sul. Ela está predestinada a cumprir esse papel, por operar a partir de uma das maiores e mais pluriculturais cidades do planeta, onde se mesclam elementos europeus, africanos, indígenas e asiáticos em combinações fecundas.

Parque de esculturas - O prédio da Bienal, ícone cosmopolita da arquitetura moderna, feito de concreto armado, aço e vidro, e, simultaneamente, encarnação da herança industrial da cidade, insere cada obra de arte em um contexto de modernidade, oferecendo na sua extensão de quatro campos de futebol os melhores pré-requisitos para a apresentação e recepção de arte contemporânea. Provavelmente ele é o mais belo dentre todos os prédios de bienais do mundo, inclusive por causa do seu vão de aérea leveza e da sua rampa de elegância barroca, que corta os três pavimentos em espirais irresistíveis.

Planetário - Por isso, na 26 ª Bienal foi dada especial atenção à distribuição espacial. Levaram-se em conta critérios conceituais, estéticos e técnicos. O ponto de partida de todas as considerações foi a arquitetura do prédio, que sugere um agrupamento espacial de suportes. O espaçoso pavimento térreo, com um pé-direito de mais de sete metros e uma visão geral para o Parque do Ibirapuera, presta-se particularmente bem a um parque de esculturas com obras tridimensionais de grande porte. A primeira metade do segundo andar, em virtude da luz favorável que ali predomina, incidindo do leste e do oeste e, também, difusamente de cima e de baixo, oferece as condições ideais para um salão de pintura. A outra metade desse andar médio, mais escura, foi como que criada para um multíplex de videoinstalações, um planetário onde o observador pode afundar no cosmos das imagens digitalmente geradas.

Essa divisão facilita não apenas a orientação do público mas, também, a formação de uma massa crítica em cada grupo de suportes. Surgem, então, no edifício centros de gravitação distintos, com suas respectivas e específicas “temperaturas” estéticas. Crescendos e diminuendos se revezam.

O caráter grave das esculturas do térreo é abrandado pela leveza etérea do salão de pintura. O vão central, uma espécie de Praça da Apoteose, na qual as esculturas de Artur Barrio, Cai Guo Quiang e David Batchelor se elevam até o terceiro andar, representa uma espécie de grampo, reforçando o sentimento de coesão entre as diversas partes da exposição. Esse eixo vertical vai das ruínas da terra até as alturas aéreas das imagens artificialmente criadas, passando pelo salão elegante dos refinamentos da pintura.

Em vista dessa encenação, quem não se lembra de uma cidade barroca brasileira, com todas as suas contradições? A rampa elegante de Niemeyer lembra as linhas grandiosamente curvadas da capela São Francisco de Assis, de Aleijadinho, ao passo que os jovens escultores brasileiros sugerem, com instalações frugais, a decadência do resplendor, por exemplo, da Casa da Baronesa, em Ouro Preto, que está prestes a ruir.

O fragmento foi desde sempre a matéria mais nobre da criação barroca.

A fotografia, que permite relações diretas e indiretas com a pintura, a escultura e o vídeo, acaba formando um elo central entre as três outras técnicas e estende-se como uma corrente ou um fio vermelho pela exposição inteira. No segundo pavimento, ela cria uma passagem fluida da pintura ao vídeo. É também a fotografia que traz à luz paralelos admiráveis na escolha temática de artistas de países tão distintos como Alec Soth (EUA) e Zwelethu Mthetwa (África do Sul) ou Simryn Gill (Austrália) e Veronika Zapletalova (República Tcheca).

De modo geral, pode-se constatar, em muitos dos trabalhos expostos, um saudável ceticismo em relação à sociedade industrial e ao mundo digital. As dúvidas se estendem ao high tech e às suas promessas. Daí os materiais preferidos de muitos escultores serem “madeira velha” – tradução da palavra indígena Ibirapuera – e objetos de uso cotidiano de todo tipo, elaborados com procedimentos simples, artesanais, sem grande dispêndio técnico. Essa poesia do precário emerge também nos temas de muitos fotógrafos. Não admira, portanto, que também o desenho volte a receber honras, ele que é o suporte anti-high tech por excelência, com sua modéstia e sua reivindicação à incompletude.

“Contrabando de imagens” - O tema da 26ª Bienal foi escolhido de modo a permitir que uma pletora de posições artísticas se identifique com ele. O conceito do Território Livre tem várias dimensões: a físico-geográfica, a político-social e, por fim, a estética, que evidentemente nos interessa mais no contexto da exposição.

Na estética, o território livre começa onde o mundo convencional termina. Designa aquele espaço no qual a realidade e a imaginação estão em conflito. Os artistas são os guardiões das fronteiras de um reino situado além da sociedade administrada, em paragens não mais alcançadas pelo poder interpretativo das instâncias política e econômica. Ao passo que todos brigam incessantemente em torno da pergunta sobre o quê pertence a quem, a arte define as relações de propriedade a sua maneira. No domínio da estética tudo é de todos.

No âmbito da Bienal interessa-nos saber agora como as devastações do mundo real e das relações interpessoais se condensam na arte. Como as obras de arte são mais do que meros fatos, a condensação artística de fenômenos da realidade será sempre mais plurívoca e complexa do que uma mera reportagem. Essa regra vale também quando o artista se serve, na fotografia e no vídeo, de dois meios aos quais se costuma atestar uma elevada proximidade com a realidade. Mesmo inseridos em conflitos, os artistas não duplicam o mundo, mas criam espaços livres em meio à realidade. Recorrendo a metáforas e símbolos, eles transportam a matéria-prima terrena a um estado novo, só acessível à experiência sensorial. Alegórica, a obra de arte revela outra realidade. A arte existe fora da causalidade e não pode ficar presa no arcabouço férreo de mecanismos profanos de coação.

Os artistas criam um território livre de dominação, com isso um mundo contraposto ao mundo real: um mundo do vazio, do silêncio, da parada reflexiva, na qual o delírio que nos circunda é suspendido por um instante. Mas o território da arte é também um país do enigma, no qual a avalanche de mensagens simplórias, que nos inunda a partir dos focos de produção do kitsch, é traduzida em código cifrado. Rompendo as fronteiras materiais, o artista se torna um contrabandista de imagens entre as culturas.Bienal como território livre - No Brasil não faltaram tentativas de criar territórios livres. Lembremos apenas a fundação de Brasília e, pouco antes, há meio século, a fundação da Bienal de São Paulo. Ambas são aliadas naturais, por brotarem do mesmo espírito esclarecido e compartilhar a vocação para o recomeço. Ambas foram concebidas como fonte de imagens novas, pavimentando o caminho do País na direção da modernidade.

A Bienal de São Paulo é uma área extraterritorial onde os artistas erigem as suas povoações utópicas. Concebe-se como último diferencial, no qual se acumulam a massa crítica e a energia positiva que permitem o surgimento do pressuposto da transformação da sociedade e a intuição de novas formas do convívio humano. Cada geração de artistas é chamada a fazer novamente o levantamento topográfico dessa terra de ninguém e traçar-lhe os contornos.

Somente as artes dispõem de um estoque universal de signos e arquétipos, cujo intercâmbio mobiliza a memória coletiva da humanidade. Se o artista é, portanto, um contrabandista de imagens, a Bienal pode vir a ser um entreposto no reino da estética, onde a curiosidade, casada com o prazer da conquista, basta como documento de identidade, onde os sentidos despertos são aceitos como bilhete de entrada e onde se comercializam bens preciosos, mas sem cobrança de direitos alfandegários.